sábado, 27 de março de 2010

quando ela for embora

quando ela for embora,

as marcas de dedo no monitor

vão me fazer lembrar.

as músicas pops e o chiclete de canela

vão me fazer lembrar.

o protetor solar filtro 30 que ficou

na prateleira de cima

vai me fazer lembrar.

a carta 4 vermelha com a pontinha amassada

do UNO

vai me fazer lembrar.

as próximas 2 horas de camisa molhada

de lágrimas

vão me fazer lembrar.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Continho

"Eu nunca dirigi uma carroça, moço". Mas, mesmo assim, não tinha jeito. O que havia ali era uma donzela ferida no meio da plantação de cana precisando ser levado ao Posto Médico e seu pai, o moço a que me referi, não tinha coordenação motora pra controlar qualquer coisa. E a gente ficou ali numa troca de olhares e a pressão sobre mim aumentando, o sangue da moça escorrendo e eu não sabia controlar a tal da carroça. Eu sempre soube que isso de passar as férias no interior não daria certo.

E nada funcionava naquele lugar. Não havia celular pra ligar pra uma ambulância vir buscá-la (por mais que demorasse, seria mais rápido que eu dirigindo uma carroça) e o poste telefônico tombara há duas semanas e ninguém foi fazer a manutenção. E o velho olhava pra mim, até que gritou "Ah, seu imbecil, minha filha tá morrendo,tá perdendo sangue" e foi aí que, não sei como,meu espírito de herói falou mais alto e como se fosse a coisa mais fácil do mundo, subi na carroça e fui, controlando sem nenhuma dificuldade. O Posto Médico ficava a 30 km dali. Eu estava indo o mais rápido que podia, dando o meu melhor para salvar a pobre moça, que havia cortado sua perna com o facão que usava para remover a cana. E eu sentia como se não fosse eu ali, a velocidade dos cavalos refletia-se nas batidas incessantes e ferozes de meu coração, era como se eu e aqueles cavalos e aquela carroça fôssemos um só, tudo em perfeita harmonia.

4 Km, 6 Km, 9 Km, 13 Km, 16 Km, 17 Km,parei. Eu já não conseguia saber qual era o caminho e perguntei à moça, que era moradora da região, portanto boa conhecedora do local mas ela já estava inconsciente fazia tempo e só soltava uns grunhidos de dor e aparente confusão mental. Era o fim, pra ela. Mas não, o herói não pode desistir da mocinha assim, e retomei nas minhas mãos as rédeas da carroça e fui.

16 Km,15 Km,parei. Eu acabara de perceber que já havia passado por ali e não havia ninguém que pudesse me dizer por onde ir e o suor escorria em largas doses, como numa avalanche, enchente em túnel, essas coisas e eu comecei a chorar em desespero. "Porra, por que eu tenho que ser respnsável pela morte dela?! Como?! Por que eu, seu Deus ingrato, filho-da-puta?!" E caía a chorar desesperadamente, ela provavelmente já estaria morta a esssa hora, pela quantidade de sangue que havia perdido. Eu estava enlouquecendo...e aquele sol, aquelas MOSCAS! Moscas demoníacas, satânicas, desgraçadas, começavam a circular em volta da enorme ferida da mulher. "Por que não fizemos um curativo rápido?" pensei, mas aí lembrei que a casa ficava a uma enorme distância, seria mais tempo perdido, caso tentássemos. E eu via o tecido morto se formando na região machucada e as moscas e o calor e o suor e o desespero e a loucura.

Pocotó, pocotó, pocotó, pocotó, saí com a carroça em qualquer direção e com toda a velocidade possível, eis que chega uma hora em que eu retomo a consciência e lembro, subitamente, que eu não sei dirigir carroça e que eu nem sequer conhecia aquela moça ou o pai dela. Como eu havia ido parar ali? Que férias foram essas que eu tirei?

Então, desci da carroça, observando a moça, que até era bonita, se não fossem as expressões sofridas de quem trabalha na lavoura. E aí saí correndo o mais rápido possível, com os olhos fechados, imaginando que em algum momento fosse aparecer uma árvore pra que eu batesse e ficasse inconsciente. Era o melhor a se fazer, sem dúvida. Corre, corre, corre, corre, corre, corre, pernas doem, falta-de-ar,parei. E ao parar, comecei a ouvir o barulho de água, como se fosse uma cachoeira imensa. E vou correndo em direção ao barulho da água, correndo incessantemente e ouço a água se aproximando, se aproximando, ficando bem próxima, bem próxima, até que acho a cachoeira gigante e ainda nauseado da corrida, fico fascinado em estar na foz de uma enorme cachoeira, onde havia um despenhadeiro.

Eu lembro que sentia muita sede, muita sede e fui correndo como louco em direção à agua e mesmo pegando-a em minhas mãos, elas continuavam secas e intactas. Secas, intactas, secas, intactas, secas. E um ódio dum animal ferocíssimo me sobe o corpo, o calor absurdo me corroendo os sentidos e a razão e eis que grito "AAAAAAAAAAAAAAAAAA" e saio correndo em direção ao penhasco e correndo e correndo e me aproximando...

E então pulo! "AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA", caindo, meus braços girando freneticamente, vou morrer, amém, era tudo o que eu precisava, finalmente a paz.

Aí vejo meus pais me segurando, um de cada lado, gritando:
_Filho, filho, acorda, é só um pesadelo, é só um pesadelo!

E eu, molhado de suor, me percebo em casa, seguro, em minha cama, com meus pijamas ainda infantis. Abraço meus pais e choro de alegria, agradecendo a eles por estar ali, vivo, são e salvo.

Quando eu tive esse sonho, eu tinha 14 anos. A parte em que agradeci por estar vivo era verdade, só que nunca mais fui são e nunca mais estive a salvo de ter terríveis pesadelos. De tantos pesadelos que tenho, eles quase já fazem parte da minha realidade. Eu nunca mais fui o mesmo...nunca mais.